Sexta-feira, 21 de Dezembro de 2018

Não resistimos a publicar um texto sobre o Natal, acabadinho de sair no face, publicado por Frei Nuno Serras Pereira, certamente o sacerdote católico que melhor usa a língua de Camões. E além disso é a história dum Natal abrantino....

 

Carvões

1. Naquela noite de Natal, a casa da avó, em Abrantes, como de costume, fervilhava de animação com a enchente familiar, do lado paterno. Como não cabíamos todos na sala de jantar, o grupo dos mais novos comia na sala dos armários, sua contígua, assim chamada pelas cantoneiras que ocupavam, do chão ao tecto, todos os ângulos. Ali se guardavam as loiças, as compotas, a marmelada, os folares (pela Páscoa), as boleimas, o arroz doce, as tigeladas, a palha de Abrantes, os sonhos, enfim, as sobremesas próprias de cada época. Esta divisão tinha uma mesa onde habitualmente se tomava o pequeno-almoço e a merenda, nome que a minha avó dava àquilo a que nós impropriamente chamamos lanche; era separada da sala de jantar por duas portas de vidraça, dava para a cozinha por uma porta de madeira maciça e tinha uma janela de guilhotina sobranceira ao pátio da cisterna, coberto por uma latada, então desnuda, mas que no Verão se enchia de parras e uvas suculentas e saborosas. Na cozinha via-se ao fundo o fogão a lenha onde as criadas, como então se dizia, preparavam as refeições que recendiam os mais variegados odores. No Verão era ali, num armário debaixo da mesa de mármore, que se guardavam as bilhas com água para a manter fresca. A porta para o exterior dava para uma varanda, onde nós, os quatro irmãos mais velhos, nos tempos livres, jogávamos hóquei em patins, mas também onde, quando era preciso, se matavam as galinhas ou os perus que se iam buscar ao galinheiro, no fundo do quintal, ao lado da casa da lenha.
Acabado o jantar de Natal, depois de pedida licença à avó para nos levantarmos, passámos pela sala de jantar, atravessámos a sala encarnada, que só se abria em dias de festa, corremos pelo quarto da avó, subimos ao sótão, onde dormíamos, agachámo-nos de modo a tirar rapidamente os sapatos ou botas de debaixo das camas, descemos em tropel, passámos pelo quarto da tia Mená, descemos as escadas que iam dar à entrada, guinámos 180 graus e, chegados à sala das arcas, encaminhámo-nos para a sala da lareira, onde enfileirámos o calçado. Era nesta última que estava montado o presépio, atapetado de abundante musgo que tínhamos andado a recolher pelas árvores e muros dos campos, coberto por figuras de barro, encantadoramente toscas. Entretanto, os mais velhos vinham também descendo e iam-se aconchegando na sala da braseira – esta era separada da sala das arcas pela sala do piano e dava para a varanda dos arcos, que se abria sobre o jardim e era subposta à varanda da cozinha. Porém, pelas onze, onze e meia da noite os lugares trocavam-se. Irmãos e primos mais novos eram “encerrados” na sala da braseira enquanto os mais velhos dispunham, na sala da lareira, os presentes que o Menino Jesus tinha trazido. Não podíamos ver nada até à hora devida, que era só depois da Missa do Galo, que se celebrava, então, mesmo à meia-noite. Primeiro badalavam os sinos da vetusta Igreja de São Vicente, depois, uns cinco ou dez minutos antes da hora, tocava a sineta para avisar da iminência da celebração. Como a casa era bem perto do templo, só a este último sinal é que nos agasalhávamos para enfrentarmos o frio da noite e saíamos. A Missa, luminosa e resplandecente de alegria interior, era celebrada com os vagares próprios do Cónego Freitas. Os mais novos estávamos como que divididos entre a suspensão maravilhada da celebração dos mistérios e a pressa do fim, numa sofreguidão pelos presentes. Terminados os ritos e as saudações de boas-festas aos amigos e conhecidos, no adro da igreja antiga, por debaixo dos arcos botantes, para onde dava a porta lateral que tínhamos por costume usar, deitámos a correr para casa, sendo recebidos pelos latidos alegres do Toy, um fox terrier, e pelo ronronar da Patuda e suas crias, uma gata com que o Toy convivia mansamente, para além da Bigodaças, uma coelha domesticada que partilhava desta amizade inter-espécies.
Na sala das arcas amontoámo-nos todos até que estivessem presentes os pais, os tios e a avó, espreitando avidamente os embrulhos pelas vidraças das portas da casa da lareira. Quando finalmente fomos autorizados a entrar, dirigi-me para o meu sapatinho agarrando de pronto o maior e mais vistoso dos embrulhos. Desenlacei a fita, rasguei o papel, e deparou-se-me uma caixa de papel pardo e reles que abri movido por uma inquieta curiosidade, logo seguida de um grande assombro, que subitamente rebentou numa intempestiva cólera e me fez lançar raivosamente tudo para a lareira que crepitava alegremente: era uma caixa cheia de carvões! Carvões!!! Carvões negros, medonhos, fuliginosos, mais sombrios que a noite mais escura de invernia, mais tristes que um calvário. Ainda para mais numa noite de Natal! Que “piadinha” sem gracinha nenhuma! E logo da Mená, que era sempre tão querida e amiga! Parvoíces! Sentei-me a um canto, de trombas, e amuei melancolicamente.
Entretanto, o Luís, meu irmão, afilhado da Mená, descobriu igualmente que o presente oferecido pela madrinha era também uma caixa a abarrotar de carvões. E logo fez ali uma galhofa: Ai que bom! Há tanto tempo que queria carvões e ninguém mos dava. Até que enfim! E com exclamações de regozijo e ares de grande festa começou a partilhar o seu “tesouro”. Um carvão para a avó, outro para o pai, o terceiro para a mãe, etc. E todos agradeciam entre sorrisos e gracejos a preciosidade que recebiam, até que esgotados os carvões o meu irmão descobre uma quantia avultada de dinheiro! O meu ardeu na lareira…
Este episódio da infância ficou-me para sempre como uma lição. Tantas vezes Deus permite “carvões” nas nossas vidas, enfermidades, lutos, desempregos, injustiças, ingratidões, as mais diversas contrariedades, estorvos, sofrimentos e obstáculos; e, no entanto, se n’Ele soubermos esperar e confiar, nunca nos deixa ficar mal, pois por debaixo dos “carvões” há sempre uma avultada quantia de Graças. Afinal, como diz São Paulo, Deus concorre em tudo para o bem daqueles que O amam, e Santo Agostinho adianta que embora Deus nunca queira o mal, o permite, mas somente porque pelo Seu poder omnipotente é capaz de tirar do mal um bem maior. Afinal foi isso que aconteceu na Redenção: do mais grave de todos os pecados que o homem podia cometer – a crucifixão e morte de Jesus Cristo –, tirou a nossa Salvação. Do maior mal tirou o maior bem – onde abundou o pecado, diz São Paulo, superabundou a Graça de Deus. Importa pois não se revoltar, desalentar, desistir ou isolar, como eu fiz, impedindo-me a mim mesmo, uma vez que deitei tudo a perder, de receber a prenda que a Mená me tinha preparado. O Luís, pelo contrário, encarando a circunstância com bom-humor e confiança, sabendo partilhar as suas dificuldades (os carvões), encontrou o dom escondido e uniu a família numa partilha jucunda.
Pedir com simplicidade que nos ajudem a levar a cruz – os carvões – faz-nos crescer na humildade e oferece aos outros a possibilidade de amadurecerem na generosidade. Quem pede percebe que sem os outros pouco é, não consegue ser quem é; quem se oferece, saindo de si mesmo para se dar desinteressadamente, aprende o amor que consiste no dom sincero de si mesmo como ensina o Concílio Vaticano II.
O presente que me foi oferecido com tanto amor, ao não ser acolhido, ao ser lançado ao fogo, ateou em mim labaredas infernais, símbolo daquela perdição eterna a que nos podemos condenar por culpa própria e da qual Deus nos quer salvar. Pelo contrário, os carvões compartidos pelo Luís, que cada um magnanimamente tomou para si, são sinal da sua (deles) oblação àquele fogo de amor divino que, tomando-os para Si, os abrasou com tal intensidade e veemência de amor que os confundiu Consigo, transformando-os em brasas incandescentes de caridade e alegria, em chamas de amor, ateando incêndios pentecostais.

(...)


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