Existem em Constância duas tradições sobre o degredo de Camões que se perdem na memória dos tempos e das quais o ilustre camonista, Dr. Adriano Burguete, nos deixou registo nos seus estudos publicados nos anos 40. Uma das tradições coloca o poeta no Palácio da Torre e, a outra, na conhecida «Casa dos Arcos».
É mais propriamente sobre a questão dos «arcos» da «Casa de Camões» que versa o presente artigo pois creio poder trazer algo de inédito(?). O assunto da origem dos «arcos» divide as opiniões e, parece, ainda fará correr alguma tinta. Vem-me à memória a polémica do início dos anos 90 sobre o projecto da sede da Associação da Casa Memória, de Victor Consiglieri. Na altura promovi um abaixo-assinado que recolheu mais de trezentas assinaturas para que a obra avançasse – em resposta a um abaixo-assinado que pretendia embargar a obra. Em causa estavam, alegadamente, as linhas revolucionárias da sede da associação (os arcos já estavam estilizados no projecto, tal como no monumento de Lagoa Henriques).
Alguns queriam que houvesse uma reconstrução da «Casa dos Arcos» como a conheciam de algumas fotos. Com arcos, tal qual. Não perceberam (ou queriam confundir…) na altura que a obra não poderia parar, sob pena de não vir a ser mais apoiada pelo parlamento. A Dona Manuela de Azevedo, eterna fundadora e presidente da associação, explicou aos contestatários que as ruínas quinhentistas seriam preservadas. O que aconteceu. E que, de futuro, não ficaria fora de hipótese, uma reconstrução dos «arcos». Uma casa como a do século XIX, na verdade, nunca serviria os fins da associação, só por si.
Prevaleceu o bom senso e o abaixo-assinado que promovi de apoio à obra e à estética do projecto fez vingar o projecto. O assunto percorreu os diários nacionais. E nunca me saiu da memória. Porque foi uma luta dura na defesa da associação. O projecto esteve para discussão pública e muitos dos contestatários (cerca de 90 pessoas, muitos deles nem eram do Concelho) esperaram que o prazo terminasse para virem tentar embargar a obra pela qual tanto almejávamos desde sempre. Estavam do lado errado da história. Assim como estão errados os que pretendem retirar à associação a sua genuína liberdade e autonomia, com o falso pretexto de que é impossível subsidiar as suas actividades sem ser com contratos-programa e com a chamada influência dominante da câmara. Nada de mais falso. Os municípios podem financiar as actividades das associações através da lei das autarquias locais. A não ser que as queiram controlar politicamente…
Não sendo versado em história ou sequer em arquitectura mais não poderei do que emitir a minha visão pessoal, face aos elementos de que disponho sobre a questão dos «arcos». Nestas matérias em que não há provas irrefutáveis, nunca podemos dar como definitivas quaisquer conclusões a que possamos chegar.
É comum ler-se que os arcos da «Casa de Camões» teriam sido acrescentados à casa pelo Bacharel João António de Moraes, no início do século XIX, aquando da sua reconstrução, dada a ruína a que havia chegado (refira-se que o edifício tinha acolhido anteriormente os serviços da Câmara e da vereação).
Leith Hay, oficial inglês das campanhas da guerra peninsular deixou-nos uma gravura datada de 1810 (1), em que na vista parcial da vila surgem na «Casa de Camões» precisamente três janelas rasgadas em forma de arco. Este pormenor nunca foi explorado (?). Não conheço nenhuma recensão sobre o assunto. Os três arcos estão lá. Em 1810!
Duas questões prévias se colocam desde já: saber se a reconstrução da casa é posterior à gravura de 1810 e se há registos das três janelas rasgadas em forma de arco?
A posse da «Casa de Camões» por parte do Bacharel João António de Moraes, depois, Desembargador do Porto, foi algo atribulada fazendo lembrar os «arranjos» de usucapião tão conhecidos do Portugal real. Em 1813 veio o dito requerer à câmara constitucional da vila de Punhete, de que era juiz presidente António Feio Montalvo, «para haver de o introduzir na posse dos antigos Paços do Concelho(…)». (2) Parece que o requerente «com certos pretextos», passa-se a citar, «fora pouco a pouco demolindo as paredes intermédias e entulhando clandestinamente as lojas do dito Paço pela porta de um quintal que junto tem e logo que o achou suficientemente entulhado mandara tapar a porta do seu quintal e se introduziu a servir-se pela porta do dito Paço». Por aqui se vê que é juízo apressado escrever-se que o homem era «proprietário da casa» como já li recentemente na imprensa. Mas adiante… A câmara, por sua vez, descontente com o «atentado contrário ao Alvará de Lei de vinte e três de Julho de mil e setecentos e sessenta e seis», denunciou os factos a Sua Majestade, corria isto o ano de 1817. O suplicado, entretanto, veio requerer à nova câmara, sendo presidente o mesmo Feio, «para haverem de lhe fazerem uma reforma de títulos que nunca teve do solo que diz ser seu». Via-se assim o Bacharel, «perplexo e sem títulos», levando para este fim várias testemunhas. O usucapião e as suas testemunhas…
A Câmara, dado o estado de ruína em que se achavam algumas paredes de vários edifícios da vila, determinou em vereação de 22 de Fevereiro de 1823, que fossem convocados Amaro Ribeiro e Sebastião José «oficiais pedreiros e inteligentes» para, na companhia da mesma câmara, irem pelas ruas publicas da vila e declararem sob juramento quais os edifícios que ameaçavam maior ruína. Tudo isto vem no agravo cível (2).
Num auto de vistoria de 1818 (3) conta-se que vieram o Provedor e Contador da Comarca de Tomar e mais os mestre carpinteiro Pedro Paulo de Azevedo (do Concelho) e Sebastião Ribeiro e Miguel Ribeiro (pedreiros chamados na ausência dos do concelho) para «que vissem e examinassem as casas que serviram em outro tempo de Passos do Concelho averiguando qual a sua extensão, qual era o seu estado antes de fazer obras nelas o Doutor João António de Moraes». Ali se cita um acórdão de 30 de Outubro de 1813 dos camaristas , a respeito da nova obra feita pelo dito Bacharel.
A documentação trazida à liça parece provar assim que as obras de reconstrução são posteriores à gravura de 1810 de Leith Hay.
Neste auto de vistoria, os ajuramentados, passa-se a reproduzir, «declararam mais que a dita nova obra feita por aquele doutor António segundo o que então viram e agora acham fora demolir parte dos dois arcos de tijolo que serviam de apoio aos emadeiramentos(…)». Estes arcos serviriam de comunicação com as lojas lê-se ali.
Mais se lê que o dito Doutor João António tivera vantagem nesta obra «de se aproveitar de algum tijolo os arcos cuja quantidade não podem arbitrar segundo o tamanho que segundo a sua lembrança tinham os arcos que estes seriam construídos com mil tijolos pouco mais ou menos que dão o valor de dois mil e quatrocentos reis a razão de duzentos e quarenta reis cada cento». E prosseguem: «passara também a tirar o partido de se aproveitar da maior parte da pedra das paredes arruinadas e demolidas cuja quantidade arbitram em trinta carradas (…) por ser pedra ordinária e nenhuma cantaria pois não havia no edifício senão as ditas três janelas rasgadas (…)». Mais adiante surge nova referência às «três janelas para o Tejo».
O facto da gravura de 1810 apresentar três janelas rasgadas em arco coincide com os documentos que referem três janelas rasgadas para o Tejo. Teriam sido aproveitados os tijolos dos arcos demolidos para a construção dos cinco arcos da varanda que o ciclone de 1941 derrubou? Fica a pergunta.
O conhecido e conceituado arquitecto Raul Lino chegou a emitir parecer sobre a famosa casa:: «Pelo todo desta construção arruinada com seus arcos de alvenaria, seu ressalto de parede, e ainda pelo carácter da respectiva cachorrada esparsa, não tenho dúvidas em afirmar que se trata verosimilmente de uma construção anterior à época do Renascimento, com possível influência mudéjar. Os restos de cantaria que se divisam na parede posterior parece terem feição nitidamente manuelina. Se tudo pertenceu à mesma construção, teríamos portanto restos de uma casa à volta de 1500». (4)
Sabemos que foi o 2º Conde de Abrantes, Dom João de Almeida, que em 1515 assinou o alvará sobre a Casa que hoje conhecemos como «Casa de Camões» ou «Casa dos Arcos». Essa descoberta deve-se ainda à saudosa Dra Mª Clara Pereira da Costa.
Quanto aos «arcos» temos uma certeza: a gravura de 1810 contém três arcos e os documentos dessa época referem a existência de «três janelas rasgadas»… em arco (?).
José Luz
(Constância)
PS -não uso o dito AOLP
(1) Sob o título «Punhete from de opposite bank of the Tagus», de Leith Hay, com data de 1810, biblioteca nacional digital.
(2)Agravo Cível, de 27 de Abril de 1823, A.N.T.T. Documento citado por Maria Clara Costa (1977), em «Casa de Camões», edição da Comissão para a reconstrução da Casa de Camões em Constância, subsidiada pelo Fundo de fomento Cultural da Secretaria de Estado da Cultura.
(3)Auto de vistoria, 1818, A.N.T.T. Documento citado na mesma obra referida em (2) atrás.
(4)Raul Lino, in «Luís de Camões em Constância, pelo Dr Adriano Burguete, Lisboa, 1942.
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