já o Bordallo fazia o elogio do chanfalho.....
porque tinha tido imenso medo de levar com um pau de marmeleiro dum construtor civil abrantino.
"José Peres, nascido em Abrantes nos fins do primeiro quartel do século XIX, pertencia a uma família modesta; não seguira estudos; mas possuia qualidades de trabalho e um sentido prático da vida que lhe conferiam uma situação relativamente preponderante no seu meio. Lavrador, negociante, empreiteiro de obras públicas - em Abrantes e arredores toda a gente o conhecia. O seu próprio tipo físico - atarracado, tronchudo, face larga, barba à passa-piolho, chapéu braguês, jaquetão de saragoça, cinta vermelha - tornava-o inconfundível. Ora, um belo dia, o nosso José Peres tomou conta de uma empreitada pública; mas, terminada a obra, a respeito de ver o dinheiro nada. Pediu, insistiu, até que resolveu vir a Lisboa falar directamente com o ministro das Obras Públicas, o conselheiro António Cardoso Avelino, que era seu conhecido. Desembarcou na Estação de Santa Apolónia e dirigiu-se ao Terreiro do Paço. Como o ministro não tivesse chegado ainda, decidiu esperá-lo debaixo da Arcada, junto ao portão de aceso ao Ministério e, para maior comodidade, sentou-se na cadeira de um engraxador que ali estacionava. Bordalo Pinheiro era então - ele, o grande artista! - simples amanuense da Secretaria da Câmara dos Pares, coincidiu ir ao Ministério das Obras Públicas levar uns documentos destinados a uma das repartições e, ao atravessar a Arcada, deparou com um vulto tronchudo, sentado na cadeira do engraxador, a enrolar um cigarro, com um grosso marmeleiro ao lado. Num relance, Bordalo fitou-o da cabeça aos pés, murmurou de si para si "Que bom tipo!" e galgou o portão do Ministério. Quando voltou, o homem continuava no mesmo sítio e Bordalo meteu conversa com ele.
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Bordalo afastou-se, mas a figura daquele homem que o destino colocara, inesperadamente, no seu caminho, jamais se desprendeu do seu espírito. Instintivamente - maravilhoso o instinto dos verdadeiros artistas - "sentiu" que estava ali, não apenas uma figura pitoresca, mas um tipo característico.
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No segundo número da Lanterna Mágica, após o encontro de Bordalo com José Peres, surgia, pela primeira vez, em esboço, o tipo do "Zé Povinho".
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Desde aí o "Zé Povinho", com a sua face larga e risonha, a sua barba à passa-piolho, o seu chapéu braguês, a sua jaqueta de briche, o seu ar ao mesmo tempo caturra e paciente, pé de boi e filósofo, nunca mais deixou de acompanhar a obra satírica de Bordalo. Teria sido, de facto, a figura do "Zé Povinho" inspirada, se não psicologicamente, pelo menos fisicamente, pela figura do Zé Peres, de Abrantes?" [Páginas11 a 14][Artigo não Assinado]
[Autores. Boletim da Sociedade de Escritores e Compositores Portugueses. Director: Luis de Oliveira Guimarães. Redacção e Administração: Avenida Duque de Loulé, 111 - 1.º - Lisboa. Número 64. Ano XIV - Julho - Agosto de